(Podem ler o relato do meu parto aqui)
Mais de dez meses depois, sinto muita necessidade de escrever sobre o parto mais uma vez.
Já perdi a conta às vezes que me disseram “Deixa, tens um bebé saudável e isso é o mais importante. Esquece isso!”. Sim, é de facto o mais importante. No final correu tudo bem.
Mas uma mulher, enquanto viver, nunca se esquecerá de como se sentiu no momento do parto.
E eu só sentia uma tremenda culpa. Culpa porque não consegui esperar até que o meu bebé decidisse nascer sozinho e fui ao hospital grávida de 40 semanas e 3 dias em desespero por uma ajuda (por causa da PUPPP de que sofri). Culpa porque não tive coragem de entregar o meu plano de partos quando me perguntaram se tinha um. Culpa porque não consegui abrir a boca para pedir uma bola de pilates para alívio da minha dor. Culpa porque não consegui exigir que o João estivesse sempre comigo. Culpa porque cedi à pressão e aceitei epidural. Culpa porque não consegui manter-me em movimento durante o trabalho de parto. Culpa porque não consegui fazer força de forma eficaz. Culpa porque não consegui pedir para tentar outra posição que não a de deitada na cama. Culpa porque o meu bebé teve de ser sujeito a ventosa com a pressa de o fazerem nascer. Culpa por me sentir tão frágil, desprotegida, ansiosa, desorientada…
(...) uma mulher, enquanto viver, nunca se esquecerá de como se sentiu no momento do parto.
Eu que tinha tudo planeado, que sabia exatamente o que queria e não queria no momento do parto, que tinha tudo organizado na minha cabeça (e no papel, no plano que não entreguei), naquele dia bloquei. Entreguei-me à violência obstétrica que hoje em dia se pratica nos hospitais onde se nasce, que ao estar tão bem disfarçada de simpatia e sorrisos (tive sorte, a equipa era muito simpática) me deixou completamente baralhada e com esta culpa enorme nos ombros.
Lembro-me que depois do parto, nos primeiros dias, para além das imensas dores que tinha, sentia uma enorme vergonha. Sentia-me como se tivesse estudado muito para um exame, soubesse tudo na ponta da língua e tivesse tirado nota zero. Sentia como se tivesse treinado meses e meses para correr a maratona da minha vida e tivesse desistido no primeiro quilómetro.
Lembro-me que depois do parto, nos primeiros dias, para além das imensas dores que tinha, sentia uma enorme vergonha.
Há tempos, alguém me dizia “Há o parto com que sonhamos e há o parto que recebemos. E é preciso fazer o luto.” E eu sinto-me nesse processo. Um processo de luto que não sei se alguma vez será terminado, sobretudo quando há sequelas que ainda não estão resolvidas: uma incontinência urinária e fecal de esforço potencialmente resultantes de um parto com ventosa e de ter feito força de forma descontrolada, de forma mal direccionada e na altura errada (ainda não me sentia pronta para fazer força) tal como me disseram para fazer, da episiotomia que não pude escolher negar, e de sei lá mais o quê que me fizeram. Uma sequela que me tem acompanhado ao longo destes meses e que tem afectado a minha vida de forma significativa. Felizmente encontrei a pessoa certa para me ajudar com a reabilitação pélvica.
Com o tempo, com as coisas que fui lendo e descobrindo, consegui apagar grande parte dessa culpa. Mas agora em vez de culpa eu sinto muita revolta. Porque agora percebo que eu não sou a culpada, eu sou a vítima.
Eu e tantas outras mulheres, que como eu, são vítimas de violência obstétrica e por vezes nem se apercebem disso. É como diz a Sandra Oliveira, doula, fundadora da Bionascimento e autora do livro “Nascer Saudável – Gravidez e Parto Informado (Editora Chá das Cinco, 2017), nesta entrevista “as mulheres portuguesas têm andado a ser enganadas no parto”.
Porque agora percebo que eu não sou a culpada, eu sou a vítima.
O livro que me fez chorar em plena Fnac, queria falar-vos dele. Assim que o vi tive de pegar nele, tinha de o ler. Ao desfolhá-lo parei acidentalmente na página que explica porque não se deve fazer a manobra de Kristeller, aquela que consiste em fazer força sobre o fundo do útero com as mãos ou antebraço para acelerar a descida do bebé pelo canal vaginal.
“(…) rotura uterina, danos no esfíncter anal, fraturas no recém-nascido ou lesões cerebrais, e aumento de transfusão sanguínea entre mãe e feto. (…) Não há investigação suficiente relativamente à sua segurança para o bebé. Os efeitos desta manobra no períneo da mulher são inconclusivos.” Não pude evitar as lágrimas e a revolta que senti crescer dentro de mim. Lembro-me bem de ter duas enfermeiras a fazer força sobre a minha barriga com o pretexto de “o seu bebé já não está a gostar de estar aí dentro, temos de ajudar” depois de eu estar em trabalho de parto há apenas 9-10 horas e de tentar fazer força umas três vezes, talvez uns 15 minutos. Lembro-me de ouvir uma dizer “assim já não preciso de ir ao ginásio hoje.”.
Lembro-me de na altura só querer que elas o tirassem de lá de dentro rapidamente porque todo o discurso e linguagem corporal me transmitiam ansiedade e muita, muita pressa de fazê-lo nascer. Será que era por necessidade do bebé ou será que era por necessidade logística? Não sei e é triste eu sentir esta dúvida e esta falta de confiança em quem me acompanhou neste momento tão importante das nossas vidas. Na última consulta antes do parto disseram-me "o seu bebé está muito bem colocado, mesmo cá em baixo. Vai ser rápido!". Pois bem, parece que mesmo assim não estava a ser suficientemente rápido para os números que o hospital queria cumprir...
E ao ler esta passagem do livro da Sandra, e tantas outras sobre episiotomia, a manobra de Valsava, a indução mecânica (o “toque maldoso”, aquela que me fizeram sem qualquer consentimento, sem que me explicassem ou perguntassem o que quer que fosse, apenas um “deite-se ali”), percebi que tinha de o ler todo. Tinha de voltar a mexer na ferida para que ela pudesse sarar completamente. Tinha de completar o meu luto.
(...) todo o discurso e linguagem corporal me transmitiam ansiedade e muita, muita pressa de fazê-lo nascer.
Lembro-me de que um dos motivos que me levou a aceitar a epidural naquele dia foi - para além do meu extremo cansaço por já não dormir mais de uma hora seguida há três semanas e por ter estado 12 horas na sala de espera sem saber o que iria acontecer, e da pressão que senti por parte da equipa para a receber - foi de pensar que não iria conseguir deitar-me outra vez para me fazerem mais toques porque era muito desconfortável para mim estar deitada (já me tinham feito uns quatro desde que tinha chegado ao hospital, todos muito dolorosos). Não iria conseguir colaborar com a equipa.
Como é que isto era a minha preocupação? Como é que não me passou pela cabeça que eu podia negar que me fizessem mais toques? Como é que não pensei na altura que era mais importante colaborar com o meu bebé do que com a equipa médica?
É bom ser humilde e eu ía com esta posição de humildade com medo de ser vista como a “xica esperta”. Uma vez um professor disse-me “há uma linha muito ténue que separa o “ser humilde” do “ser coitadinha”, e eu fui sem dúvida a “coitadinha” naquele dia e fizeram de mim o que quiseram, tudo disfarçado por muita simpatia e sorrisos.
Se o livro da Sandra tivesse chegado um ano antes talvez hoje não tivesse que vos contar esta história. Talvez eu tivesse ido mais convicta das minhas vontades, saberia melhor identificar as incongruências, os atos violentos e teria força para exigir os meus direitos e os direitos do meu bebé. Talvez eu tivesse tido o parto com que sonhei. Talvez não tivesse a recuperação horrível que tive que não me deixou desfrutar dos primeiros dias com o meu bebé em pleno. Talvez hoje não precisasse de fisioterapia pélvica. Talvez não tivesse tanto receio e expectativa em relação a um eventual segundo parto.
Hoje volto a escrever sobre o parto e partilho convosco toda esta informação tão pessoal porque acredito que não me posso calar. O meu parto não pode cair no silêncio, não pode ser esquecido. Nem o meu nem o de nenhuma mulher. Porque as más experiências por culpa alheia têm de ser denunciadas e as boas experiências têm de ser partilhadas. Somos uma tribo e as tribos vivem da união, vivem da aprendizagem por experiência, vivem da sabedoria ancestral.
Hoje volto a escrever sobre o parto e anuncio-vos a minha intenção de fazer uma reclamação junto de quem de direito porque a violência obstétrica de que fui vítima, mesmo disfarçada de simpatia e sorrisos, não pode continuar a ser prática comum nos hospitais onde se nasce, muito menos naqueles que se dizem uma referência nacional em obstetrícia.
E assim espero concluir o meu luto.
Obrigada Sandra pelo teu precioso contributo para que se volte a ter o parto humanizado em Portugal.
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